O Viking Negro

     Esta é uma tradução de um texto da escritora e historiadora Maria Kvilhaug publicado em sua página no Facebook.

     Geirmundur Heljarskinn era seu nome nórdico, um homem que viveu entre 850 e 950 AD, nascido em Rogaland (Noruega) e um dos primeiros a se estabelecer na Islândia - e um dos mais ricos. Sua história é interessante em muitos sentidos, inclusive por seus descendentes na Islândia poderem ainda hoje traçar uma linha contínua, tanto geneticamente como historicamente, até ele e sua esposa siberiana Illþurrka. Um destes descendentes, Bergsveinn Birgisson, doutor filólogo e escritor islandês, escreveu um livro sobre seu antepassado: Den Svarte Vikingen (O Viking Negro), publicado em 2013. E isto nos leva a uma das principais razões que fazem da história de Geirmundur Heljarskinn tão interessante: ele era "negro" na percepção das pessoas daquele período. A lenda do nascimento de dois gêmeos negros e como as pessoas reagiram a este fato é intrigante, além de nos trazer reflexões.

     A história original de Geirmundur Heljarskinn está presente em uma história curta dentro do Landnámabók chamada Geirmundar þáttr heljarskinns e conta a história de Geirmundur e seu irmão Hámund, assim como a introdução sobre sua linhagem. Em uma postagem anterior eu falei sobre Augvald, rei dos Avaldsnes em Rogaland, sua vaca sagrada e suas filhas guerreiras. Augvald era pai de Jössur, que por sua vez era pai de Hjör, que era pai de Hjörleif o Mulherengo (casou-se três vezes), que era pai de Half (originalmente Há-Alfa, o "Elfo Grande"), que foi pai de Hjör, nascido por volta de 816 AD. Hjör foi "à viking" (saquear) em Bjarmland, a parte mais ocidental da Sibéria onde muitos nórdicos iam negociar ou saquear. Lá ele pegou como refém uma jovem siberiana conhecida como Ljufvina, filha do "Rei de Bjarmland". Assim Hjör casou-se com ela e a transformou em rainha. Os povos da Sibéria neste período eram tribais e nômades, sendo assim seu status como princesa de Bjarmland foi muito provavelmente inventada para legitimar a ascensão de uma mulher estrangeira capturada à Rainha de Rogaland.

     A maioria do povo siberiano é de origem mongol, de cabelos negros e pele escura - e Ljufvina não era exceção. Hoje nós sabemos que quando duas pessoas de tons de pele diferentes têm filhos, a pigmentação mais escura tende a ser mais visível, mesmo que as crianças possuam uma mistura igual de genes, mas naquela época era esperado que os filhos seguissem a linhagem paterna e se parecessem com estes. Assim, foi um choque para Ljufvina e àqueles que auxiliaram no parto de seus filhos, quando ela deu a luz a dois garotos de pele escura e cabelo preto. Para os nórdicos antigos, estas crianças eram consideradas negras. Ljufvina se sentiu envergonhada por ter dado a luz a dois filhos negros, mesmo ela sendo negra. Ser "negro" não era necessariamente motivo de preconceito neste tempo, a questão era simplesmente pelo fato do pai ser loiro e alto e pelo fator social da crença de que seus filhos devessem se parecer com o mesmo. Porém, os filhos não lembravam o pai de maneira alguma. Na verdade eles pareciam ser de um grupo completamente diferente e a complexão mais comum da realeza e nobreza escandinava naquele período era loira com a pele clara, portanto, as crianças não se pareciam com pessoas da classe que pertenciam, mas com típicos escravos estrangeiros.

     Envergonhada, a rainha siberiana pediu aos presentes no parto para que guardassem isso como um segredo: oportunamente, havia uma desconhecida escrava branca na corte que acabara de ter dado à luz um menino de pele clara, chamado de Leif. A rainha exigiu que o garoto branco e loiro fosse dado a ela, enquanto seus dois filhos negros fossem dados à escrava. Assim, Geirmundur e Hámund passaram seus primeiros quatro anos nos aposentos de escravos da corte de seu pai e pouquíssimas pessoas de confiança sabiam quem eles realmente eram.

     Na história, existe uma espécie de "moral". Como veremos, não importava de maneira alguma que os meninos fossem de pele clara ou escura. A única coisa que importava era o fato que eles eram filhos do rei e carregavam em si muitas das virtudes nobres e reais desta grande linhagem, independente da pele escura. Os dois jovens negros cresceram e se tornaram saudáveis, resistentes, fortes e inteligentes - todas as características associadas com a realeza-, enquanto o jovem príncipe branco cresceu fraco, covarde e não muito esperto - um veredito de sua ascendência escrava. Quando os meninos chegaram a quatro anos de idade, era claro para aqueles que sabiam do segredo: ninguém podia esconder a verdade, que o menino escravo que se parecia com um príncipe branco não tinha nada de nobreza no fim das contas, ele só tinha a cor considerada "certa" por ser mais próxima da cor de Hjör e nada mais. Aqui segue uma citação do fim da história:

     "Os dois jovens cresceram sobre o feno assim como qualquer outra criança escrava, até completarem três anos de idade. Leif (aquele que era verdadeiramente um escravo, mas considerado ser príncipe) era constantemente carregado nos braços de mulheres e esbanjava de grande honra, como era esperado de uma criança da realeza. Mas conforme todas as crianças foram envelhecendo, ficou claro que Leif era ‘lento’ em todos os assuntos, enquanto Hámund e Geirmundur cresciam ‘rápidos’ em todas as maneiras, pois esta era sua verdadeira natureza. É dito que o Skald Bragi esteve presente em determinada ocasião em uma festa do Rei Hjör e ficou hospedado com o rei durante algum tempo. Um dia, é dito, o rei levou sua guarda para caçar e poucas pessoas sobraram no salão. Skald Bragi estava na casa, manuseando um junco que trazia nas mãos. Havia puxado seu casaco sobre ele e murmurava algo para si mesmo. A Rainha estava deitada na cama no outro extremo do salão, coberta de roupas, de maneira que ninguém poderia ver que ela estava lá se já não soubessem. Leif estava sentado no trono e brincava com ouro. Hámund e Geirmundur sentaram na palha e viram Leif brincar com ouro, assim como notaram que não havia mais ninguém no salão, então Geirmundur disse para seu irmão: 'que tal irmos até Leif e tomarmos o ouro para brincarmos com ele'? 'Estou pronto', respondeu Hámund. Então os jovens correram até o trono e tomaram o ouro de Leif, que triste começou a chorar. 'Veja como o filho do rei se porta', disseram eles, 'implorando por um anel de ouro; certamente é mal usado aquilo que ele tem'. então os dois jovens agarraram Leif e o expulsaram do trono, enquanto riam. Skald Bragi se levantou e foi até onde a rainha estava, a cutucou com o junco e disse este verso:
     
Primeiro eu vi aqui dois
Que me confundiram a mente,
Geirmundur e Hámund
são os filhos de um líder.
O terceiro, Leif
é como um escravo;
nada de bom há nele
não há promessa.

     A Rainha levantou e levou os jovens embora, desfazendo a troca de filhos com a escrava e imaginando que agora poderia ver realizada a promessa de honra e nobreza em seus dois filhos. Com a chegada da noite o rei voltou e sentou em seu trono, então a rainha foi até ele com os seus filhos e lhe contou toda a verdade sobre como ela havia feito a troca com a escrava e implorou para que ele não ficasse bravo. O rei olhou para os jovens e disse: 'certamente eu acredito que estes sejam da minha linhagem, mas eu nunca havia visto peles tão negras como desses dois'! E por essa razão, daí em diante os meninos sempre foram chamados pelo apelido de ‘heliarskinn’ (pele escura). Foram saquear assim que se tornaram adultos, acumulando muitas riquezas e honra. Também lideraram grandes frotas e se tornaram os maiores reis dos mares de seu tempo".

     Por fim, Geirmundur, assim como seu pai antes dele, viajou para Bjarmland, na Sibéria, e retornou com outra esposa siberiana, Illþurrka. Juntos, eles foram se estabelecer na Irlanda e depois na Islândia, onde se tornaram uma família muito poderosa. A verdade desta história foi confirmada por testes de DNA dos descendentes vivos de Geirmundur que vivem na Islândia, os quais possuem DNA mitocondrial (materno) que indicam a ancestralidade asiática/mongol de sua mãe.
  

Hjör e Lufvina com os gêmeos Geirmundur e Hámund Heljarskinn. Ilustração do artista norueguês Anders Kvåle Rue.


Texto original na página da Maria Kvilhaug: https://goo.gl/4fPVzk

Livro "O Viking Negro" (2013), de Bergsveinn Birgisson: https://goo.gl/StoCLD / https://goo.gl/FfcmK8

Artigo "The Untold Saga of The Black Viking", de Eygló Arnarsdóttir: https://goo.gl/0HhH1h

Landnámabók, "O Livro da Colonização Islandesa": https://goo.gl/CGY12t

Comentários

Postar um comentário