As Mulheres na Era Viking


É sabido que as mulheres na sociedade nórdica da Era Viking eram responsáveis por diversas funções, da educação dos filhos e o trabalho na fazenda até a defesa do lar na ausência dos homens. Este texto traçará um breve panorama de como se dava a existência dessas mulheres, apresentando alguns de seus costumes e práticas, alguns de seus direitos em relação à legislação, algumas de suas representações em fontes de diversas naturezas e também na religiosidade desses povos. E como não poderia deixar de ser, também será abordada a representação da mulher nórdica como supostas guerreiras em uma sociedade dominada por guerreiros e exploradores homens conhecidos por sua honra e bravura.
Primeiramente, em tempos de inúmeras adaptações de entretenimento sobre o universo nórdico da Era Viking, que impulsionam e banalizam ideias como “mulheres vikings”, é preciso salientar que para fazer uma discussão com maior qualidade e assertividade sobre o papel da mulher nessa sociedade, devemos retomar a boa e velha discussão sobre o conceito de “viking” e ter em mente as suas definições mais acuradas (confira mais sobre isso no texto Quem Foram os Vikings?). Para nos ajudar, Judith Jesch, professora na Universidade de Nottingham e uma das maiores autoridades em estudos vikings, logo no início da clássica obra Women in the Viking Age explica que:
“Historicamente, as mulheres tinham poucas oportunidades de participar em guerra, assassinato, estupro e roubo; tais atividades foram usualmente a prerrogativa de membros do sexo masculino. Se um ‘viking’ é um saqueador-guerreiro pagão, então ‘mulher viking’ é logicamente impossível”. [1]
Com isso compreendido, podemos prosseguir na análise do papel das mulheres naquela sociedade, que era bem distinto do papel do homem. Assim como em toda a extensão da Europa medieval, essa sociedade era dominada pelos homens e os gêneros tinham um conjunto de comportamentos que eram mais esperados socialmente, ou seja, homens deveriam ter comportamentos ditos masculinos e mulheres comportamentos ditos femininos. William Short, do grupo de estudos vikings Hurstwic, conjectura que “seria tão improvável um homem tecer roupas quanto uma mulher participar de um ataque viking”. [2] Portanto, convencionalmente, as mulheres não participavam de batalhas ou invasões, embora participassem de jornadas de exploração e povoamento, como foi na Islândia na segunda metade do século IX e na Vinlândia, no nordeste canadense, no começo do século XI.
De maneira geral, as responsabilidades das mulheres estavam relacionadas e definidas ao campo doméstico, e alguns hábitos e costumes entre gêneros eram restringidos por lei. Por exemplo, o Grágás (em português “Leis do Ganso Cinzento”), que era uma espécie de código jurídico da Islândia entre os anos 930 e 1263, continha leis que proibiam as mulheres de usarem roupas masculinas ou de transportar armas.

As mulheres viviam sob a tutela de seu pai, dos irmãos mais velhos ou do marido, depois de casada. Elas tinham liberdade limitada para dispor de seus bens e eram proibidas de participar diretamente da maioria das atividades políticas, não podendo, por exemplo, exercer funções de chefe ou de juiz e também não podendo participar das “things” (assembléias de homens livres que se reuniam para fazer leis, resolver disputas, tomar decisões administrativas). Em contrapartida, as mulheres eram muito respeitadas e possuíam grande liberdade se comparadas com mulheres de outras sociedades europeias da época. Segundo a pesquisadora Luciana de Campos, do Núcleo de Estudos Vikings e Escandinavos (NEVE-UFPB): “a mulher podia administrar as finanças da família, podia supervisionar a fazenda na ausência de seu marido e podia exercer sua autoridade frente aos servos e escravos sem ser contestada”. [3] E uma vez que se tornassem viúvas e não estivessem mais sob a tutela de algum homem, seja seu falecido marido, seu pai ou seus irmãos, elas podiam ser ricas, importantes proprietárias de terras e de bens e podiam usufruir de toda a sua fortuna da forma que desejassem.
Antes de prosseguir, é preciso contextualizar uma fonte da qual o leitor terá contato com diversos exemplos extraídos dela nos próximos parágrafos: as Sagas Islandesas. Elas são um conjunto literário escrito na Islândia durante a Idade Média, que tratam da vida e dos feitos de membros das famílias importantes da Islândia durante o período entre o descobrimento do território, em 874, até cerca de 1050, quando o Cristianismo chega à região. E é importante frisar que estes são textos que foram escritos entre os séculos XII e XIV, ou seja, posteriormente aos acontecimentos que narram, mas que mesmo assim se constituem como um dos conjuntos literários mais importantes e originais da literatura medieval e como uma fonte inestimável para entender os costumes, a visão de mundo e o sistema legal dos antigos escandinavos. [4]
Pois bem, existe um capítulo da Laxdæla saga que conta a história de Unn Ketilsdottir, que já era viúva quando deixou a Noruega para morar na Escócia com o pai e o filho. Quando estes também faleceram, ela sentiu que tinha que deixar a Escócia e se juntar ao restante de sua família na Islândia, então providenciou a construção de um navio, reuniu sua família e seguidores e navegou para a Islândia. Uma vez lá, Unn adquiriu terras, providenciou a construção de uma fazenda e administrou essa fazenda. Ao longo dos anos, ela doou parte de suas terras para seus apoiadores mais próximos e arranjou casamentos para suas filhas. [5] Portanto, observamos que Unn assumiu todas as responsabilidades que normalmente seriam realizadas por um marido. E quando veio a falecer, ela foi colocada dentro de um navio e enterrada num túmulo muito bem ornamentado, o que era uma honra normalmente reservada a homens poderosos e ricos.
Além disso, existiam leis que protegiam as mulheres de várias atitudes masculinas indesejadas. O código jurídico Grágás, citado anteriormente, contém leis e multas para delitos que variam de beijos a relações sexuais não consentidas. O assédio de um homem com uma mulher era proibido na sociedade nórdica da Era Viking e não era tolerado por ninguém. Um capítulo da Kormáks saga diz que enquanto caminhava pela rua, Kormákr viu uma mulher de nome Steingerðr sentada, então ele se sentou ao seu lado, conversou um pouco e depois lhe deu beijos indesejados. Outras mulheres que estavam próximas viram o ocorrido e intervieram antes que Kormákr tentasse fazer algo pior. Kormákr foi multado em duas peças de ouro, o que era uma quantia bem significativa de dinheiro. [6] Já a Króka-Refs saga diz que certo dia um homem chegou à casa de Helga sabendo que seu marido Refur e seus filhos estavam todos em uma thing que ocorria naquele dia. Esse homem dizia que queria comprar uma mulher e Helga, ofendida, respondeu que ele fosse procurar em outro lugar. Porém, o homem avançou e a agarrou, então ela resistiu e se defendeu e os dois entraram em luta. Refur voltava da thing justamente naquele momento e quando o homem o percebeu, se desvencilhou e tentou fugir do local, mas o casal o perseguiu e o matou. [7]
Agredir uma mulher era motivo de grande desonra e repúdio na sociedade nórdica da Era Viking. Por exemplo, a Brennu-Njáls saga nos conta que Gunnar, em um acesso de raiva, deu um tapa no rosto de sua esposa Hallgerður quando descobriu que ela havia roubado comida de uma fazenda próxima durante um momento de fome, e ela disse que nunca iria esquecer aquela agressão. Certa vez, quando estava em apuros, Gunnar pediu fios de cabelo da sua esposa e da sua mãe para que pudesse arrumar seu arco e flechas e manter os bandidos longe. Porém, elas negaram os fios de cabelo, e nesse momento Hallgerður o lembrou daquele tapa no rosto que recebera e sua mãe o repreendeu dizendo que ele havia se comportando tremendamente mal e que aquele desprezo era compreensível e justificável. Então Gunnar foi atacado por bandidos e acabou sendo assassinado, e mesmo tendo lutado bravamente o desprezo que sofreu por aquele ato e as circunstâncias de sua morte repercutiram por toda a região. [8]
Ferir uma mulher, então, era algo extremamente vergonhoso e indigno, mesmo durante um ataque a estabelecimentos inimigos. Até mesmo os tipos de violência “de brincadeira” contra meninas e mulheres eram repudiados. Isso não quer dizer que elas eram tratadas como seres frágeis, indefesas ou incapazes de se defender. Além dos exemplos já apresentados, existem relatos nas sagas sobre mulheres que travaram combates armados. A Gísla saga, por exemplo, conta que quando Gísli foi atacado por um grupo de homens, a sua esposa estava ao seu lado, armada com um bastão, e enquanto Gísli lutava usando uma espada, ela golpeava os inimigos e os desmaiava. E ao sobreviverem, admirado com a bravura e a habilidade da esposa, Gísli teria dito que “não sabia que tinha se casado tão bem”. [9]
Certamente houveram exceções a essa conduta de não-agressão às mulheres. Exemplo disso foi a violência sofrida por elas durante os ataques e saques vikings às terras estrangeiras, onde muitas foram sequestradas como espólio de guerra e acabaram sendo vendidas como escravas. Segundo William Short, há poucos documentos que abordam a prática do estupro contra as mulheres e tais documentos relatam que esses atos teriam ocorrido como parte da violência típica de uma batalha ou invasão. Ele também diz que alguns relatos dessa época, como os Annales Bertiniani escritos ao longo do século IX na França, sugerem que os nórdicos eram muito menos propensos a estuprar durante os seus ataques do que outros invasores europeus da época, como os carolíngios. [10]
Entre as responsabilidades diárias das mulheres estavam: preparar e servir alimentos; limpar e lavar a residência; ordenhar animais e produzir laticínios; os cuidados infantis; a confecção de roupas que ia da fiação e tecelagem ao corte e costura, entre outras tarefas domésticas. As informações que temos sobre as mulheres nas áreas urbanas são escassas, entretanto, a historiadora Susan Abernethy argumenta que se elas eram casadas com artesãos ou comerciantes, possivelmente elas ajudavam nos negócios do marido. [11] Podemos brincar com a metáfora de uma “linha imaginária” na porta da casa que dividia as responsabilidades dos homens e das mulheres, sendo que elas cuidavam de tudo da porta pra dentro. Geralmente as mulheres detinham as chaves de casa e portar este objeto denotava um símbolo de status a elas, que eram consideradas suas guardiãs e podiam dizer quem tinha permissão para entrar, sair e frequentar suas propriedades. Os trabalhos arqueológicos a respeito dos achados funerários femininos demonstram diversas chaves encontradas junto ao corpo das mulheres nórdicas da Era Viking. [12]
A propósito, a arqueologia nos fornece boas evidências a respeito da indumentária dessas mulheres. Geralmente elas usavam um longo vestido feito de linho ou de lã, com uma espécie de avental por cima. No clima frio elas poderiam usar dois vestidos, sendo que o vestido feito com o melhor material ficava por cima. Essas roupas eram presas com cintos e com broches na altura da clavícula, que poderiam receber adornos como correntes de contas de vidro e de prata. Nesses broches se penduravam diversos itens como chaves, agulhas, faca, pente, tesoura, e talvez até uma pequena bolsa. Nos pés calçavam sapatos de couro que poderiam ser fechados ou mais abertos no dorso do pé e sobre todas as roupas ainda poderia ir uma capa ou xale de lã capaz de ser fechada por um broche.
As evidências arqueológicas também demonstram que as mulheres nórdicas da Era Viking adoravam jóias. Além dos broches, elas usavam pulseiras e anéis de dedos e de pescoço, que podiam ser feitos de prata, de ouro e até de âmbar. Os colares eram compostos por peças de contas de vidro, de âmbar, de bronze e alguns até usavam pedras preciosas importadas.
Sobre o casamento na sociedade nórdica da Era Viking, o historiador John Haywood nos conta em sua obra Encyclopedia of the Viking Age que este era essencialmente um contrato entre duas famílias, que poderia ter cunho comercial, político e até militar. [13] O pretendente fazia uma oferta pela noiva aos seus pais ou tutores e, se aceito, os homens selavam o acordo apertando as mãos em frente a testemunhas e marcavam uma data para a cerimônia. As viúvas tinham mais liberdade do que as solteiras, pois precisavam apenas buscar a aprovação de seus pais antes de se casarem novamente. Segundo Haywood, foi somente no século XII, bem após a introdução do cristianismo, que o consentimento de uma mulher ao casamento se tornou necessário – até então ele era escolhido pelos pais da moça, que tinham sua tutela. Além disso, conforme o código de leis da época, o casamento era considerado obrigatório se o casal fosse visto dormindo juntos por um determinado número de testemunhas.
A cerimônia do casamento se dava na forma de um grande banquete, geralmente realizado na casa da família da noiva. Se um casamento fosse infeliz, poderia terminar com um divórcio, que era um procedimento relativamente simples de ser realizado, porém, provavelmente esse procedimento deveria ser mais complicado se houvessem propriedades em jogo. Haywood ainda nos conta que não havia penalidade para um homem que tivesse amantes ou mesmo filhos fora de seu casamento, o que era comum nos níveis mais altos da sociedade, mesmo após a conversão ao cristianismo, e bem menos incomum nos níveis mais baixos da sociedade. Em contrapartida, o adultério praticado pela esposa era um assunto sério e o marido tinha o direito de matar a ela e a seu amante dependendo de onde fossem flagrados juntos. [13]
Entretanto, se estivesse infeliz, a esposa tinha o direito de solicitar um divórcio. Quando Ibrahim ibn Yaqub (também conhecido como al-Tartushi), viajante hispano-árabe de Al-Andaluz, visitou Hedeby na segunda metade do século X, ficou surpreso ao saber que as mulheres tinham o direito de se divorciar se assim desejassem. [14] As próprias histórias das sagas envolvem muitas mulheres divorciadas e viúvas que se casam novamente, além das que preferem não se casar novamente e tocar a vida de maneira autônoma e independente, como vimos no exemplo de Unn Ketilsdottir. Além disso, as sagas descrevem um grande número de regras de divórcio que evidenciam um sistema legal bem avançado para a época. Por exemplo, a mulher poderia exigir o divórcio se o marido se estabelecesse em um novo país durante suas viagens e deixasse de dormir com ela por três anos ou se ele a agredisse por três vezes.
A maioria das histórias das sagas é sobre personagens masculinos, entretanto, é interessante observar como as mulheres são representadas nelas, com personagens fortes e com grande diversificação de papéis. E, embora as personagens femininas sejam elogiadas por sua beleza, elas são elogiadas mais frequentemente por sua sabedoria. Inclusive, muitos dos valores e traços de caráter considerados positivos nos homens, como o senso de honra, a coragem, a força de vontade, também são vistos como traços positivos nas mulheres.
As sagas também retratam as mulheres como grandes instigadoras, que frequentemente instigavam os homens a agir, a proteger a honra da família e a se vingar se fosse necessário. Ela poderia, inclusive, usar o divórcio como ameaça para instigar o marido a agir, já que o divórcio poderia resultar-lhe graves encargos financeiros. Porém, a dinamarquesa Jenny Jochens, estudiosa da história das mulheres nórdicas na Idade Média, alerta que é preciso tomar cuidado com essa representação da “mulher instigadora”:
“[...] a imagem de instigadora é atribuída às mulheres não apenas na mitologia, mas também pelos homens daquela sociedade. A figura da mulher provocadora ou instigadora não retrata as mulheres de maneira adequada. Os homens criaram essas histórias como desculpa para alegar que suas mães, irmãs ou esposas os convenceram a cometer crimes e que essas más ações não foram o resultado de sua própria vontade. As mulheres foram usadas como bodes expiatórios para algumas das decisões mais atrozes da história.” [15]
Nas sagas, as mulheres também são mostradas sendo hábeis praticantes de magia. O tipo de magia “Seiðr” foi criado por Freyja, uma das divindades mais poderosas e importantes do panteão nórdico. Freyja é a deusa do amor, da beleza, da sexualidade, da sensualidade, da fertilidade, da atração, da luxúria, da magia, da adivinhação, da riqueza e do ouro, e também está relacionada à guerra e à morte, da qual a Edda em Prosa, atribuída a Snorri Sturluson, menciona que a deusa recebe metade das almas mortas em combate em seu palácio Fólkvangr, enquanto que Odin recebe a outra metade em Valhala. [16] O Seiðr era praticado majoritariamente por mulheres, sendo impróprio que um homem a utilizasse, podendo até ser perseguido por isso. Suas praticantes eram consideradas videntes ou xamãs e eram denominadas “völva” (vǫlva, “portadora da varinha”). Elas podiam vagar por cidades e por fazendas, realizando profecias e outras práticas mágicas em troca de abrigo, comida e outras formas de compensação.
Apesar desse papel à margem da estrutura social e do temor e da desconfiança que causavam, as völva parecem ter sido tratadas com respeito naquela sociedade. Entretanto, no final da Era Viking, com a ascensão do cristianismo e a conversão desses povos, elas viram crescer a perseguição, sendo cada vez mais enquadradas como perigosas praticantes de magia e de “religiões antigas”. É interessante notar como foram diferentes o tratamento e a postura dos povos nórdicos da Era Viking para a bruxaria e a magia, se compararmos com os povos europeus continentais que já estavam há muito tempo cristianizados.
A religiosidade nórdica antiga descreve sobre as “Nornas”, que são três anciãs que moram em Asgard (o reino dos deuses) e têm como importantíssima função tecer o destino dos deuses e da humanidade e zelar pelo cumprimento e pela conservação das leis que regem as suas realidades. Além dessas Nornas maiores, também existiriam entidades femininas menores conhecidas como “Dísir”, que atuavam no nível familiar e exerciam papel de tecelãs dos destinos de novos membros nascidos em uma família.
E por falar na religiosidade nórdica antiga e suas personagens femininas, é fundamental falarmos das “valquírias” (valkyrja; valkyrju), mulheres guerreiras sobrenaturais que estão mencionadas em fontes clássicas como as Eddas, o Heimskringla e algumas Sagas Islandesas, além de também estarem presentes em várias inscrições rúnicas e por toda a poesia skáldica (o “skald” era uma espécie de bardo, poeta, narrador popular na Escandinávia da Era Viking). As valquírias são deidades menores, mas formidavelmente belas e imponentes, e são conhecidas como “aquelas que escolhem os mortos”, pois descem à Midgard (o reino humano correspondente à Terra) e buscam os mais honrados guerreiros mortos em batalha para comporem o exército de Odin para a batalha do Ragnarök.
Além das valquírias, a religiosidade nórdica antiga apresenta as guerreiras “skjaldmö”, mulheres que assumem características e atitudes tidas como masculinas, usando roupas de homens e manuseando armas. O termo skjaldmö significa “aquela que porta o escudo”, daí teria vindo as inspirações para as histórias das escudeiras, como a famosa personagem Lagertha, que está em evidência na cultura popular devido às adaptações audiovisuais. O relato mais conhecido dessas escudeiras vem do historiador dinamarquês Saxo Grammaticus e de sua descrição da lendária Batalha de Bråvalla, que teria ocorrido por volta do ano 750 e que está presente em sua obra Gesta Danorum, escrita no início do século XIII (mais de quatrocentos anos depois do suposto evento), onde ele afirma que cerca de trezentas guerreiras escudeiras lutaram pelos dinamarqueses. [17]
Apesar da inestimável contribuição para os estudos e compreensão dos povos nórdicos da Era Viking, o Gesta Danorum é considerado uma obra semi-ficcional e precisa ser estudado com muito cuidado, inclusive porque grande parte do documento original desapareceu. Johnni Langer, pesquisador do Núcleo de Estudos Vikings e Escandinavos (NEVE-UFPB), relata que:
“O cronista Saxo Grammaticus enumerou várias personagens viris e bélicas em sua obra, mas foi influenciado pelo referencial classicista e não pela sociedade medieval. Tradicionalmente, o mundo nórdico foi concebido pelos acadêmicos como sendo dominado totalmente por valores masculinistas, mas recentemente essa visão tem mudado. Diversas pesquisas vêm apontando a importância da mulher na sociedade nórdica, não sendo apenas mães, concubinas ou escravas, mas ocupando importantes papéis de atividades e ocupações muito além da esfera doméstica. Muitas mulheres também foram artesãs, poetisas, curandeiras e sacerdotisas. Algumas acompanharam expedições e jornadas colonizadoras para outros países.” [18]
Para além do Saxo Grammaticus, existem poucos registros literários de que as mulheres da Era Viking participaram de guerras e batalhas. John Skylitzes, historiador bizantino do final do século XI, alega que mulheres lutaram no Cerco de Dorostolo em 971, quando eslavos de Kiev atacaram os bizantinos, e quando os bizantinos vencedores foram conferir os corpos dos eslavos derrotados, ficaram surpresos ao notarem corpos femininos entre os guerreiros caídos. [19]
As sagas também têm exemplos de mulheres guerreiras. Na Hervarar saga, Hervör, que é a filha única de Angantyr, desde muito cedo demonstrava mais aptidão para armas do que para as tarefas femininas tradicionais e acabou empunhando a espada mesmo contra os desejos de seu pai, vivendo muitas aventuras ditas masculinas e tornando-se uma grande escudeira e heroína na Saga. Freydis Eiríksdóttir é outra personagem interessante, uma mulher forte e determinada que aparece na Grœnlendinga saga (como heroína) e na Eiríks saga rauða (como vilã). Sigrid Storråda teria sido uma lendária rainha sueca que, ao ficar viúva de Erik, O Vitorioso, negou diversas propostas de poderosos pretendentes que estavam interessados ​​nela apenas por sua terra e riqueza e, inclusive, teria assassinado alguns deles depois de embebedá-los.
Todas essas personagens têm sua autenticidade histórica contestada e, do ponto de vista científico, podem não ser mais do que lendas. Entretanto, mesmo que não seja possível verificar sua historicidade, é interessante pensar que o fato de haver mulheres representadas como guerreiras, como nobres, como deidades, seja na literatura ou na religiosidade, podem ser sinais de que a cultura da sociedade nórdica da Era Viking tinha respeito o suficiente pelas mulheres para colocar algumas delas ao nível de grandes heroínas e divindades. E mesmo após a chegada do cristianismo, que notoriamente negava e suprimia a igualdade às mulheres, as personagens femininas permaneceram apreciadas e elevadas a um status que as próprias mulheres não poderiam alcançar, como é o caso de todas essas personagens heróicas e divindades relatadas nas fontes primárias.
Além das fontes escritas e orais, os estudos arqueológicos e das fontes materiais nos ajudam a levantar mais alguns questionamentos sobre a possível participação das mulheres em batalhas. Os fragmentos da tapeçaria encontrada no barco viking de Oseberg, na Noruega, mostra figuras em trajes que se assemelham às das mulheres da Era Viking, segurando lanças e espadas. Uma série de broches encontrados em Tissø, na Dinamarca, retratam o que se acredita serem figuras femininas armadas a cavalo. Uma miniatura encontrada em Hårby, também na Dinamarca, mostra uma figura feminina da Era Viking segurando uma espada e um escudo – o público costuma interpretá-la como a representação de uma valquíria, mas em nenhum lugar da religiosidade nórdica antiga as valquírias são descritas empunhando espadas (sua arma típica é uma lança), o que levanta questões sobre se essa figura poderia representar uma mulher humana guerreira.

Para fomentar ainda mais essa questão, podemos mencionar o estudo liderado por Charlotte Hedenstierna‐Jonson, publicado em 2017 no periódico American Journal of Physical Anthropology, que conseguiu confirmar através de análises de DNA que o famoso cadáver do “Guerreiro de Birka” (Bj 581), encontrado em 1878 na Suécia e tido como um dos maiores achados funerários da Era Viking, na verdade era o cadáver de uma mulher! [20] Esse estudo talvez possa ser considerado a primeira prova razoavelmente consistente cientificamente de que, de fato, haviam mulheres nórdicas da Era Viking que também guerreavam.
estudo de Charlotte e sua equipe levanta também a hipótese de que as mulheres não somente guerreavam, como também poderiam exercer funções militares estratégicas. No túmulo, o cadáver da mulher nórdica estava cercado por armamentos como uma espada, uma lança, machados, flechas, escudos, além de jogos de tabuleiros (o que demonstra conhecimento tático e estratégico) e restos mortais de dois cavalos, que podem ter sido seus companheiros de batalha. Por muito tempo, todas essas honrarias típicas para um soldado masculino de alta patente da Era Viking, fizeram os arqueólogos assumirem que os restos mortais pertenciam a um guerreiro homem, já que o contingente dessas tropas era essencialmente masculino.
Apesar da relevante novidade que o estudo foi capaz de trazer, a sua polêmica repercussão também gerou críticas. Muitos estudiosos e pesquisadores do tema pediram cautela para não considerar uma exceção como uma regra (neste texto mesmo vimos supostas histórias de mulheres que tiveram boa fortuna, que possuíram terras e administraram negócios, mas que não necessariamente foram guerreiras). Judith Jesch criticou determinadas afirmações apresentadas nos relatórios do estudo e observou que a interpretação do “Guerreiro de Birka” como sendo uma mulher nórdica guerreira é sintomática de um fascínio geral do século XXI por “mulheres vikings”, tanto na cultura popular quanto no discurso acadêmico. [21]
Leszek Gardela, arqueólogo e pesquisador do Museu Nacional da Dinamarca que tem sólidos estudos a respeito dos túmulos femininos da Era Viking, vê a questão da autenticidade histórica de mulheres nórdicas guerreiras como problemática. Segundo ele, o atual estágio das pesquisas ainda não oferece respostas definitivas que permitam conjecturar uma idéia da sociedade nórdica da Era Viking na qual as mulheres tenham participado ativamente e frequentemente de invasões, de saques e de atividades de guerra de maneira geral. [22]

CONCLUSÕES

Ao longo dessa pesquisa foi possível conhecer alguns dos costumes, práticas, direitos e representações das mulheres nórdicas da Era Viking, tanto através de fontes literárias quanto de fontes materiais. Vimos uma diversidade de funções que as mulheres tinham na vida cotidiana, sendo uma célula fundamental para o funcionamento daquela sociedade. Também vimos que elas se vestiam bem e adequadamente ao clima e que tinham hábitos vaidosos.
Causa muita surpresa ao depararmos com a cobertura que essas mulheres dispunham no código de leis daquela sociedade, que se demonstra muito avançado para a época. Fica evidente que a sociedade nórdica da Era Viking permitia certa liberdade, autonomia e igualdade às mulheres, especialmente se comparada a outras sociedades europeias do medievo que estavam há muito cristianizadas.
Mesmo que os mais sofisticados métodos e pesquisas científicas ainda não sejam capazes de fornecer teses e argumentos que embasem uma autenticidade histórica a respeito da prática guerreira pelas mulheres nórdicas da Era Viking, é difícil negar que existiram mulheres fortes, poderosas e importantes naquela sociedade, como as que foram exemplificadas nesta pesquisa e muitas outras que renderiam infindáveis linhas escritas. Todos os artefatos históricos encontrados, como o da figura feminina armada e montada a cavalo para guerrear, são fascinantes e, nesse sentido, talvez os trabalhos arqueológicos possam nos surpreender mais cedo do que pensamos.
As lendárias personagens femininas daquela sociedade são fortes e sábias, suas histórias estão repletas de demonstrações de independência e de força pessoal por parte delas. E muito embora isso possa ser apenas manifestação de grande fascínio da época, como é evidente no trabalho de Saxo Grammaticus e nas sagas, por outro lado pode significar que a cultura daquela sociedade valorizava as mulheres o suficiente não apenas para incluir prestigiosas deusas e heroínas em sua religiosidade e em suas sagas, mas também para atribuí-las habilidades, capacidades e autonomia muitas vezes equiparáveis às dos homens.
Para concluir, podemos ressaltar o fato de a sociedade escandinava atual ser reconhecida pela consciência e pela prática da igualdade de gênero, com programas, leis e políticas que a estimulam e que tornam os países nórdicos modelos a serem seguidos neste quesito. No entanto, ao olharmos para a história desses países, como fizemos neste texto, e mediante resultados de trabalhos científicos sólidos nos campos da Arqueologia, da Sociologia, da própria História e de demais ciências, é tentador entender alguns fatos como sugestões de que as práticas de igualdade nessas sociedades sejam mais antigas do que pensamos e que, talvez, a sociedade nórdica da Era Viking já apresentasse um rascunho da ideia de igualdade de gênero que hoje é tão admirada nos países nórdicos.


Vídeos relativos ao tema:



REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
[1] JESCH, Judith. Women in the Viking Age. The Boydell Press, 2003, p. 1.
[2] [10] SHORT, William R. The Role of Women in Viking Society. Hurstwic. (online)
[3] CAMPOS, Luciana de. Mulheres, In: Dicionário de História e Cultura da Era Viking. São Paulo: Editora Hedra, 2017, pp. 513-514.
[4] LANGER, Johnni. História e Sociedade Nas Sagas Islandesas: Perspectivas Metodológicas. Alétheia - Revista de estudos sobre Antiguidade e Medievo. UNIPAMPA. Volume 1, Janeiro/Julho de 2009. (online)
[5] Laxdæla saga. Chapter 5, Unn goes to Iceland, A.D. 895; [6] Kormáks saga. Chapter 24, How They All Went Out To Norway; [7] Króka-Refs saga. Chapter 16, Kafli; [8] Brennu-Njáls saga. Chapter 76, Gunnar's slaying; [9] Gísla saga Súrssonar. Chapter 18, Gisli's Slaying. Icelandic Saga Database. (online)
[11] ABERNETHY, Susan. Women’s Work and Family in the Viking Age. Medievalists.net. (online)
[12] STEELE, Ramona S. Viking Age Keys and Locks: Symbolism in Life and Death. Gotland Archaeological Field School, Papers from the 2013 Expedition. (online)
[13] HAYWOOD, John. Encyclopedia of the Viking Age. Londres: Thames & Hudson. 2000. p. 128
[14] PRICE, T. Douglas. Ancient Scandinavia: An Archaeological History From the First Humans to the Vikings. Oxford University Press, 2015. pp. 339.
[15] JACOB, Danielle. Jenny Jochens: Historian of Medieval Women. Medieval Baltimore. (online)
[16] Snorri Sturluson. Edda. Tradução de Anthony Faulkes. Londres: Everyman, 1987. p. 24.
[17] GRAMMATICUS, Saxo. War, In.: Gesta Danorum. The Project Gutenberg Ebook of The Danish History, Books I-IX. (online)
[18] LANGER, Johnni. Guerreiras nórdicas, In.: Dicionário de História e Cultura da Era Viking. Editora Hedra, 2018. pp. 326-328.
[19] HARRISON, D.; SVENSSON, K. Vikingaliv. Fälth & Hässler: Värnamo, 2007. p. 71.
[20] HEDENSTIERNA-JONSON, Charlotte. A Female Viking Warrior Confirmed by Genomics. American Journal of Physical Anthropology. 2017. (online)
[21] JESCH, Judith. Let's Debate Female Viking Warriors Yet Again. Norse and Viking Ramblings. (online)
[22] GARDEŁA, Leszek. “Warrior-women” in Viking Age Scandinavia? A preliminary archaeological study. Analecta Archaeologica Ressoviensia 8. 2013. pp. 273-339.

Comentários

  1. Excelente texto. Houve pesquisa e um cuidado especial para o tema exposto. Obrigada!

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