Runas (Parte 2)

"Eu sei que eu fui suspenso na árvore fustigada pelo vento
por nove noites inteiras, ferido pela lança
e devotado a Óðinn, eu mesmo para mim mesmo,
na árvore que ninguém sabe
de onde todas as raízes correm.

Não me alegraram com pão nem com o chifre de beber,
eu olhei para baixo, eu apanhei as runas,
as peguei gritando e eu cai dali."

- Hávámal 138-139


     Os dois trechos acima são as passagens do Hávamál que versam, especificamente, sobre a "descoberta" das Runas por Odin. O Hávamál é uma compilação de versos atribuídos a Odin, reunidos em um único poema apresentado no Codex Regius. Diferente do que vimos semana passada, estes dois trechos nos dão uma origem mística às runas e é exatamente este aspecto que discutimos hoje.


Referências históricas


     O Codex Regius é datado aproximadamente de 1270 d.C. mas existem registros muito mais antigos a respeito do uso das Runas para práticas mágicas. Uma das nossas primeiras evidências vem da obra do senador e historiador romano Tácito com o livro Germânia, de 98 d.C (originalmente chamado "Sobre a Origem e a Situação dos Povos Germânicos", é uma obra etnográfica sobre as tribos germânicas situadas a borda do Império Romano). Em um determinado trecho, Tácito descreve a prática da divinação através do ato de "jogar as runas", prática que até hoje é uma das mais utilizadas quando falamos de magia rúnica. Segue o trecho: 

     "Eles atribuem a mais alta importância em ler auspícios e 'jogar a sorte'. O processo usual é bem simples, eles cortam o galho de uma árvore nogueira, o cortam em faixas nas quais traçam com diferentes símbolos e jogam tais faixas a esmo sobre um pano branco. Então o sacerdote, se em uma ocasião oficial, ou o pai da família, se a consulta é privada, oferece preces aos deuses e, olhando aos céus, recolhe três faixas, uma de cada vez, e de acordo com os símbolos marcados faz sua interpretação. Se as runas proíbem uma empreitada, aquele assunto não é mais discutido naquele dia. Se permitido, outras confirmações são feitas através dos auspícios".

     Graças ao trabalho de Tácito temos um relato detalhado de como os antigos povos germânicos usavam as Runas e da importância destas para eles. Uma leitura negativa ou positiva poderia mudar o rumo de uma incursão militar ou definir grandes questões políticas.  A prática de arremessar contas ou objetos sobre um "tabuleiro" e ler uma mensagem sobrenatural é extremamente antiga e comum de muitas culturas.

     Apesar de ter sido a variação do alfabeto rúnico comumente utilizada na Era Viking, não existem registros de utilização da Younger Futhark para divinação. Sendo uma prática antiga, que precede até o período que a História considera como consolidação da Elder Futhark, é provável que, com o começo do uso da Younger Futhark, sua antiga versão tenha sido utilizada exclusivamente para fins mágicos.

Runas da Elder Futhark com suas respectivas pronúncias.

Sentido das runas


     Além da leitura articulada de Runas, outra forma de prática mágica é o uso de cada runa por si só, pelo sentido que cada uma carrega individualmente. Como vimos na postagem Runas (Parte 1), chamamos o alfabeto rúnico germano-escandinavo de Futhark graças a junção  das primeiras letras que o compõe: FehuUruzThurisazAnsuzRaidho e Kenaz. A runa Fehu, por exemplo, carrega o fonema da letra 'F', já a runa Uruz representa o fonema da letra 'U' e Thurisaz o 'Th'. Mas não são apenas fonemas específicos atribuídos a cada runa como também propriedades e significados mágicos.  Em uma explicação extremamente simplificada, a runa Fehu está associada à fertilidade e abundância; Uruz a uma mudança brusca e repentina, e assim por diante.

Reprodução moderna de uma bindrune para 
"Proteção do Lar". Uma combinação de Tiwaz 
(Equilíbrio), Thurisaz (Defesa), Algiz (Proteção), 
Gebo (Dom) e Othala (Herança/Propriedade).
     Tendo cada runa uma propriedade, é comum encontrarmos achados arqueológicos ou referências na literatura sobre o ato de gravá-las em peças do dia a dia como armas e amuletos. Um dos principais achados desta prática são as "runas da vitória". As runas da vitória são uma bindrune, que consiste na combinação  de duas ou mais runas, "amarrando-as" visualmente e magicamente. A bindrune das runas da vitória consiste em duas runas Tiwaz, uma em cima da outra, parecendo um pequeno pinheiro. A ela era atribuída a vitória certa.

     É evidente que cada um destes elementos possuem diferentes níveis de profundidade em seus significados, em suas ramificações e em suas ligações tanto entre si quanto entre outras runas. As Eddas e as sagas deixam bem claro que os símbolos possuem próprios e imanentes atributos mágicos que trabalham de maneiras particulares, independentemente das finalidades previstas ao qual foram colocados por seres humanos. A prática da leitura de runas inclui saber o significado das mesmas e fazer exatamente essa leitura aprofundada, a explicação colocada aqui é uma sinopse rasa dada apenas para exemplificar o conceito.

     Consideremos o seguinte episódio nEgil's Saga, onde temos um exemplo pela negativa: Egil Skallagrimssonconhecido como um dos mais famosos guerreiros berserker da Era Viking e também como um talentoso skald, diz como uma jovem teve sua saúde arruinada pelo uso incorreto das runas. Em uma de suas viagens, Egil come na casa de um fazendeiro o qual morava na rota do viking. A filha do fazendeiro estava terrivelmente doente e este pede ajuda ao viajante. Quando Egil examina a cama da jovem, ele encontra um osso de baleia com runas gravadas. O fazendeiro explica a Egil que tais runas haviam sido esculpidas pelo filho de um fazendeiro local - provavelmente um leigo do qual o conhecimento sobre as runas deveria ser ínfimo, no melhor dos cenários. Egil, sendo um mestre do saber rúnico, prontamente identifica as inscrições como a causa dos males da filha do fazendeiro. Depois de destruir as runas, raspando o pedaço de osso, ele arremessa este no fogo. Egil então grava uma diferente mensagem, com outras runas, para combater o mal causado pelo feitiço prévio. Após isso ser feito, a garota se recupera.


Uso moderno


     O uso das runas não estão somente no passado, mas viajaram conosco até o presente. No século XVII, esotéricos como Johannes Bureus desenvolveram um sistema de leitura baseado na Kaballah e na Futhark. Séculos depois, em 1902, o ocultista austríaco Guido Von List apresentou as Armanen Runes, usadas até depois da segunda guerra por diversos místico alemães e austríacos. Um dos exemplos mais recentes é a obra de Ralph Blum, de 1982, que desenvolveu um sistema de leituras rúnicas que posteriormente foi seguido por Freya Aswynn e Diana L. Paxson. Esta última, autora de livros como "Taking Up the Runes: A complete guide to using runes in spells, rituas, divination and magic" e "Essential Asatru: Walking the Path of Norse Paganism", é uma das autoras atuais mais presentes quando discutimos sobre runas. 

     Alguns autores modernos incluem uma runa em branco chamada de runa cega. Segundo Blum, essa é a runa de Odin, representando o começo e o fim e "o divino em todas as interações humanas". Historicamente não há registro do uso de uma runa em branco pelos antigos povos germânicos, sendo a runa Ansuz aquela com uma ligação forte, entre outras coisas, à figura de Odin.

Logo do protocolo Bluetooth™.
     As runas ainda estão em nosso cotidiano, em alguns lugares com maior frequência (como os países de origem do alfabeto rúnico), em outros com menor frequência. Uma das maiores referências atuais do uso de runas é o logotipo da tecnologia Bluetooth: o nome da marca é uma homenagem ao rei viking Harald Bluetooth (traduzido como "dente azul", embora em dinamarquês signifique de "pele escura"). Harald Bluetooth é conhecido por ter sido rei da Dinamarca e da Noruega e por ter conseguido unificar as tribos norueguesas, suecas e dinamarquesas, assim como o grupo procura unir diferentes tecnologias como telefones móveis e computadores. O logotipo do protocolo Bluetooth é uma bindrune com as iniciais do nome de Harald, união das runas nórdicas Haglaz e Berkana, correspondentes às letras H e B no alfabeto latino. Da próxima vez que precisar ativar a tecnologia em seu aparelho e aparecer o famoso símbolo no painel, lembre-se que é uma bindrune!





Referências bibliográficas


Diana PaxonTaking Up The Runes: A Complete Guide To Using Runes in Spells, Rituals, Divination and Magic. Weiser Books, 2005.

Sessão sobre runas do Norse Mythology For Smart People.
http://norse-mythology.org/runes
Sessão de Alfabeto Rúnico do Omniglot Online Encyclopedia.
http://www.omniglot.com/writing/runic.htm
Artigo sobre literatura na Era Viking do Hurstwic.
http://www.hurstwic.com/history/articles/literature/text/literature.htm
Artigo sobre runas e escrita da Viking Answer Lady.
http://www.vikinganswerlady.com/callig.shtml

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